14 de março de 2013

transparências

Há alguma inocência naquela sala, nas paredes cheias de livros, na luz difusa que entra pelas frestas dos estores japoneses, há qualquer coisa de carteira de escola naquela mesa com duas cadeiras, uma em frente à outra, tão estreita que desvio as pernas para que não cheguem ao outro lado, enquanto espero que se sente o meu interlocutor. Quando finalmente chega e eu atiro com a primeira pergunta enquanto o olho de frente os seus olhos estão alguns centímetros abaixo dos meus, abaixo dos lábios, abaixo do pescoço. Mesmo sentados, a diferença de alturas deixa-o numa posição privilegiada. A temperatura da minha cara aumenta em proporção directa à vergonha de me lembrar que, ainda meio a dormir, não revi mentalmente a agenda, não me lembrei ao que ia naquele dia, e vesti uma camisola até ao pescoço, mas com um decote mais do que transparente. Cedo à tentação de lhe segurar no queixo e opto pela postura agressiva. ‘Sem querer’, deixo cair o gravador na secretária com barulho suficiente para que volte a olhar para mim. Aproveito a distracção e puxo a encharpe dos ombros. A conversa segue sem novas interrupções.

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