1 de setembro de 2013

do medo

e sem aviso percebes que continuas a olhar, mas deixaste de ver. o homem de rosto marcado a rugas, o saco de plástico verde onde deve guardar os medicamentos enrolado no pulso, é apenas um homem e o saco apenas um saco. olhas, mas já não vês as vidas, as dores, a idade. a mulher sentada, com a cabeça suportada pela mão, de olheiras profundas, enegrecidas por noites mal dormidas, nada te diz, não desperta a imaginação, é apenas uma mulher. mais uma. a sala, a cheirar a vidas gastas, a cheirar à espera, é apenas uma sala. olhas e não vês a tinta a escamar das paredes, a infiltração na esquina que dá para a porta de saída, os letreiros que indicam o serviço de radiologia, análises, ortopedia. olhas, mas não vês porque deixaste de sair de ti, encafuada em ti própria, a olhar para o umbigo, a olhar para o lado, tão perto que consegues tocar a única realidade que vês com a ponta dos dedos sem sequer ter que esticar o braço. para onde foram todos os outros, todas as vidas com que te cruzavas e imaginavas mais cheias ou mais vazias que a tua? quando deixaram de entrar no teu raio de visão, nos teus ouvidos, as conversas do autocarro ou da mesa ao lado? tu tão concentrada em perceberes-te sem entenderes nada, enredada em pensamentos que um dia alguém chamou de ruminantes? e o que é isto de te fechares em ti, mesmo quando ouves o que te dizem, mesmo que respondas, dês mimo, cuides, mesmo que te rias ou chegues mesmo a lançar gargalhadas. é o medo, o medo da vida que te parece tão cheia e da qual não queres perder pitada. é o medo do vazio que se instala quando param os pensamentos e por isso não paras de pensar, cada vez mais enredada, cada vez mais fechada, cada vez com mais medo.

2 comentários:

T disse...

o medo é uma forma de sonho, mas em pesadelo? um obstáculo que nos limita a capacidade de viver e ser felizes no presente?

Sal disse...

Só me ocorre responder com outra citação:

'Tememos a morte, sim. Mas nenhum medo é maior que aquele que sentimos da vida cheia, da vida vivida a todo o peito.' [Jesusalém, Mia Couto]

mas sim, enquanto sonhamos esquecemo-nos de viver, de sentir, de olhar para o lado e esquecemo-nos que a felicidade é coisa que não existe, que apenas nos são concedidos momentos felizes, alguns verdadeiramente inultrapassáveis. É assim como as pedras de Pessoa, mas ao contrário, em bom, se guardarmos todas construímos um castelo, mas verdadeiro, não de sonho.