[Lorenzo Castore]
começa sempre da mesma maneira, depois do banho, cabelo já seco, o pincel de espalhar a base na mão direita, o frasco da base na mão esquerda. e ia jurar que é ao segundo toque, quando o pincel já passou a testa e desce ao nariz, cumprindo as regras dos conselheiros da maquilhagem que não leio, mas que vi descritas num cartaz de publicidade numa grande superfície, sem delicadezas, sem glamour. ia jurar que é quando as cerdas do pincel cor-de-rosa começam a disfarçar as imperfeições do nariz que se dão as primeiras divagações, reminiscências de outras latitudes. ao início, não sei há quanto terá sido, a imagem era sempre a mesma. o espelho à minha frente já não era o espelho da minha casa-de-banho branca, o espelho que tinha à minha frente era de um quarto escuro, vintage para ser simpática, com uma varanda virada para a piscina de águas castanhas, barrentas. de um momento para o outro, sem aviso, estava de novo em são miguel. numa semana de fins e novos começos. e enquanto o pincel deslizava pela cara, enquanto a base dava lugar ao corrector, e depois ao pó compacto, eu estava novamente nos campos verdes dos açores, nas escarpas de pedra vulcânica, nas encostas de chá que descem até ao mar. ao início era sempre assim, os açores em lisboa, o ‘acordar’ no momento em que ligava a máquina do café. o amargo de boca que punha fim aos lugares que já não são. com o passar do tempo, e depois das horas do dia, mudaram os cenários, do espelho onde chego aos açores, entro no eléctrico e estou de novo em nova iorque, nas ruas da Broadway, no passeio elevado do meatpacking district, a esplanada do dinner em williamsburg, os judeus do parque infantil, a busca pela casa do auster, voltar a atravessar o rio e gastar as solas a subir e descer avenidas pelo simples prazer de andar na rua, parar sob o arco do washington square park e encantar-me com o jazz, o improviso. sentada à frente do computador, enquanto espero que me atendam uma chamada, dou por mim a percorrer uma picada em áfrica, a chuva miudinha que transforma a terra vermelha em barro que se espalha por todo o lado, que entra em todo o lado, a picada que acaba num mar azul, ou numa estrada que leva a uma cidade junto a um rio e aos pastéis de peixe da maçaroca. a terra vermelha nos passeios de uma cidade num planalto, uma escola cor-de-rosa que em tempos guardou as histórias da família. e há passeios de bicicleta, noites brancas em madrid, museus a fazerem bolhas nos pés, viagens de comboio, radiadores furados... há sempre uma outra latitude e quando atendem do outro lado já não sei onde estou ou sequer quem sou. "the best place to be is somewhere else."
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