está um calor infernal, do qual me é difícil
queixar, vou de carro algures a caminho do aeroporto numa zona que passado
tanto tempo continua a ser de ninguém, é uma estrada comprida com uma ligeira
curva onde há anos, também sob o sol demoníaco das duas da tarde fiquei com o
carro empenado. carro a gasolina não anda a gasóleo. lembro-me desse dia, da
longa espera partilhada com a I. e das conversas. quando dou conta a cabeça já
está numa rua no centro de lisboa, frente à porta fechada de um prédio
centenário, lá dentro um gabinete ministerial, onde um dia roubei e deixei que
me roubassem beijos, era domingo, um tarde quente de Junho, e a rua estava
completamente deserta.
quando dou conta estou a recriar em lisboa toda a
minha geografia sentimental. há as escadas de uma igreja junto ao metro do
chiado e uma conversa sobre um disco e sobre a falta. há dois miradouros, santa
catarina, onde um dia percebi que me tinha curado de um grande amor, e o da
graça onde descobri que me podia apaixonar para a vida - ainda que neste caso
tenha levado algum tempo a perceber a evidência -. uma esplanada junto ao rio
que foi o meu refúgio, numa altura
difícil, durante meses, onde os empregados já me tratavam pelo nome e
reservavam mesa, mesmo que não consumisse mais do que um café e uma água das
pedras com uma rodela de limão. há a praça das flores e a sua esplanada de
muitos pequenos-almoços e jornais partilhados.
há o chiado, as ruas que subi e desci todos os dias
à hora de almoço, trocando confidências e disparates. há um primeiro beijo na
calçada do sacramento, depois de um jantar em que fui uma verdadeira cabra. há uma
escada numa das velhas fábricas da lx factory onde um dia dei dos beijos mais ternos
e apaixonados da minha vida. há um parque, chamado das conchas, onde uma
estrela cadente me concedeu um desejo que ainda hoje continua válido. uma vila
operária na graça com uma janela sobre o tejo onde amei e fui amada. há as ruas
de alfama onde, com a desculpa de saltos
de sete centímetros e da calçada portuguesa, me apoiei num ombro para que me
dessem a mão. e o pequeno miradouro lá em cima, com a sua igreja altaneira,
descoberto numa tarde de junho, tantas vezes revisitado por bons e maus
motivos. em são pedro de alcântara chorei até ficar sem lágrimas e jurei
enterrar de vez as tristezas. e do king fica a memória do segredo dos seus olhos,
o dia em que decidi arrumar o passado de vez em caixinhas verde alface, onde se
guardam as memórias felizes. o king, o meu sítio de eleição para chorar a alma
e além dela.
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