nunca acreditaste que não devemos voltar aos sítios onde fomos felizes, mas num fim-de-semana, demasiado cheio e com algumas dores à mistura, percebes que não deves tentar reproduzir as receitas da tua infância, numa espécie de regresso gastronómico aos dias mais felizes. mesmo que os ingredientes sejam conhecidos e não seja de todo complicado ‘entalar’ os vegetais, naquele ponto em que já não estão crus, mas também ainda não estão cozidos, misturar a farinha com o azeite, a aguardente, ou a cachaça à falta da primeira, com a gema do ovo e o sal e a pimenta. adivinhas a receita, porque a verdadeira, a original, está perdida numa memória corroída pelo tempo, pelo cabrão do velho alemão, juntamente com tantos momentos que querias que te voltassem a contar, as histórias dos primeiros dias, das primeiras gargalhadas, das primeiras lágrimas, dos primeiros amores, num tempo perdido num outro continente. não tentes reproduzir as receitas que te deixavam os sentidos a alerta, o sorriso sujo das frituras, a camisola com as marcas de tang. não repitas essas receitas porque os ingredientes mais importantes estão extintos, acabaram, houve ruptura de stock e a fábrica abriu falência. o sabor que te lembras estava envolto em caruma dos pinheiros, em correrias pela serra abaixo, no rebolar na relva em frente à casa grande de janelas de guilhotina, era partilhado com a tucha e a emília de trapos. aqueles sabores ficaram nos primeiros dias, nos dias verões que não acabavam nunca, nos banhos de rio, nas festas de setembro, nos cones de algodão doce, nas procissões e santas padroeiras. aquela receita, aquele sabor, saia dos dedos da minha avó, e é esse o sabor que queres de volta e não terás nunca.
A tristeza pega-se
Há 22 horas
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